quinta-feira, 22 de julho de 2010

Primeira e provavelmente, última postagem ...

Funeral da obtemperação

Milênios e milênios antes dos primeiros dias. Muito antes da primeira mulher ou homem. Antes mesmos dos animais, das grandes montanhas, das frondosas árvores e dos minúsculos vermes. Aqui, nesse lapso de tempo e espaço, essa estória aconteceu.

De certo apenas o nascer de uma nova alvorada e o cair de uma tenebrosa e escura noite. Aqui, onde o nada rejeita o peso do vazio e se torna, por força do vácuo completo, tudo. Aqui nasce essa estória.

Não havia reis ou rainhas, príncipes ou palácios. Não havia súditos ou ladrões, amigos ou inimigos. Guerra ou paz. Terras eram muitas, todas, entretanto, despossuidas de mão ou desejo de posse. Aridez perene e eterna. O marrom abundante das tardes quentes contrastava consigo mesmo em uma monótona e monocromática repetição.

Fragmentos de passado, desejos de futuro. A Terra clamava por vida. Durante séculos e séculos em uma súplica quase eterna a Terra suplicou por vida. E rogou. E rogou!

Em suas mais íntimas preces o desejo de espetaculosas estórias de cavalos e cavaleiros em aventuras audaciosas. De lutas e honrarias. De perseguições e fugas. Do fundo se seu imenso ser vibravam sons e cores nunca antes ouvidos ou vistos. Profusões de odores e sensações. O molhado e o seco. O quente e o frio. O forte e o fraco. O triste e o alegre. Desejos contrapendulares que se faziam pelos opostos o todo pulsante. Desejo infundado. Desejo de nostalgia não vivida.

Mais alguns séculos de pedidos. Agudos pedidos.

Na desesperança do nada, uma resposta singela. Do caudaloso marrom o verde claro e cintilante de uma pequena vida. Das grandes distâncias o frágil ser contrastava forte e intenso com a cortante paisagem. Tornava-se grande, imenso, forte e tenaz. Bastião de vida e forma. De cor e esperança. Fonte de radiantes e sinceros agradecimentos.

Desejo de crescesse e crescesse mais e mais. E assim, cresceu. De estupor e arrebatamento, não apenas cresceu. Tornou-se mais. Tornou-se muitos. Tornou-se diferente e variado.

A Terra realizava-se agora Mãe!

Alguns séculos a mais, pensava, e nada mais seria o mesmo. Profusões de cores e odores arrebatariam sua crosta superficial. De árida e seca, e dura, tornaria-se mais. Tornaria-se fértil. Tornaria-se útero. Tornaria-se paz!

Séculos e séculos de carinho e cuidado ateou vida ao nada. Cumpriu-se o inesperado. Mais que o rogado. Da intensa vida milagrosa, dos tentáculos que sustentavam a robustez do corpo e que rasgavam a sua grossa crosta seivou-se o néctar fundamental. Jorrou como gozo angelical. Regatos, ribeiras, fontes, rios, lagos, lagoas, mares!

Nada mais! Tudo se completava. O ciclo da vida se libertando.

A seiva que escorre na superfície e de cansado passeio rasteiro, torna-se leve. Contempla o todo do alto, de cima. Emocionada ao ver a obra: chora! A força das lágrimas alimentam a emocionante visão. Tornando-as mais verdes e fortes. Cada vez maiores. O ciclo da vida por completo!

Mas como em estórias cavalariças nada dura para sempre, a paz e a harmonia tornaram-se, mais uma vez, inquietação, dor e decepção.

Mãe Terra sente voltar, paulatinamente, a inquietação de tempos passados. A visão antes paradisíaca e estupefante torna-se agora monótona e comum. Gramíneas, flores, arvoredos, arbustos, árvores, fontes, regatos, ribeirões, córregos, rios e mares são nada mais que comuns, nada mais que o mesmo.

Mais uma vez as preces e orações tornam-se ação principal no cotidiano da Mãe Terra. Pedidos e suplicas, nada mais.

Na desesperança do nada, uma resposta singela. Do caudaloso verde claro e cintilante uma nova resposta de vida. Como que por milagre, o testemunho impreciso e atônito de um movimento voluntário. Nada mais que um nada. Tão pequeno e frágil. Tão grande e vigoroso. Despejando na Mãe Terra a alegria da escolha. Agora completa em seus desejos, alimenta e cria a pequena vida com cuidado e atenção.

Empresta ao pequeno ser sua vigorosa força, seus vastos conhecimentos, seu imenso amor. Pouco tempo até que o zelo e atenção dêem frutos.

A era das eras agora se completa. Nada mais importa. Somos muitos e um. Somos um através de muitos.

O ser se desenvolve, cria forma e vulto, volume e força. Têm em si a sabedoria dos tempos, a paz dos justos, a força da verdade e o vigor da vida. Em explosões de louvor, torna-se muitos, mais que muitos, milhares, milhões! Todas as formas, todas as cores, todos os tamanhos, para todo servir.

Séculos e séculos de dedicação e trabalho árduo foram suficientes. Nada mais de silêncio. Tudo agora explodia em sons e movimento. Emprestados de beleza e respeito, devolviam em dobro o que recebiam. Por sua força e dedicação exclusivas, Mãe Terra agora pulsava latente sob o signo da vida. Não como antes, uma vida bela, mas animosa. Latejava em voluntarismo quase caótico.

Plantas, água, aves, peixes, mamíferos, répteis, tudo em perfeita harmonia. Complementando-se um a um, como nascidos para esse fim.

Mãe terra estava radiante. Nada mais precisava e importava. Em paz viveu por longas eras, através dos séculos e séculos.

Mas como em estórias cavalariças nada dura para sempre, a paz e a harmonia tornaram-se, mais uma vez, inquietação, dor e decepção.

Mãe Terra sente voltar, paulatinamente, a inquietação de tempos passados. A visão antes paradisíaca e estupefante e completa torna-se agora mecânica e comum. Gramíneas, flores, arvoredos, arbustos, árvores, fontes, regatos, ribeirões, córregos, rios, mares, aves, peixes, répteis, mamíferos, insetos são nada mais que comuns, nada mais que o mesmo.

Mais uma vez as preces e orações tornam-se ação principal no cotidiano da Mãe Terra. Pedidos e suplicas, nada mais.

Na desesperança do nada, uma resposta singela. Da profusão de movimento e som surge, como por milagre, o testemunho completo e perfeito de um ser de luz.

Completo. Homem!

Sempre que se sentia acuado Bellasco falava consigo mesmo. Uma forma, talvez, de enganar a mente. Buscava o controle soletrando, paulatinamente as palavras. Por vezes funcionava. É certo que outro remédio não existia, era esse ou...

Tem algo errado por aqui, é certo. Como fui entrar nessa! Como! Onde estão Dorin e Daffar?! Onde?! Sempre atrasados. Por certo que chegarão. Atrasados, mas chegarão. Malditos! Chegarão. Contando estórias, blá, blá, blá...

Maldito calor! Floresta barulhenta! Não durmo há dias. Sempre com essa sensação de vigiado. Preciso me acalmar. A-cal-mar. Isso.

O corpo arcado, os cabelos sujos e soltos tapando parte do rosto anguloso. Os dentes cerrados e já bem cariados eram testemunhas das durezas dos dias. As roupas maltrapilhas, sujas. No embornal restos da última refeição: farelos de açúcar e carne seca. A montaria um caso a parte: uma pequena mula já em fase de inanição. Completamente pele e osso. Crina e rabo cortados sem capricho lembravam restos de vassouras usadas. Os cascos gastos e sem a base de ferro pediam, há algum tempo, aposentadoria. Mas era valente a cavalgadura! Como era! Firme, em riste. Nenhum sinal de cansaço. Nada!

Essa guerra é, no mínimo, suicida. Estamos a séculos tentando derrotar esse monstro e ninguém, absolutamente ninguém, ainda sequer o viu. Boatos são muitos. Tem aquela história de Wolfric e Finn (risadas!). Queriam convencer a todos que o monstro era um ser de outro mundo, que chegou até nós para nos castigar. Quatro patas, quatro olhos, quatro mãos,... O que é isso! Ahhhh!

Era a primeira vez em anos que Bellasco ria assim. Divertia-se. Sentiu um certo alívio nas risadas, como diminuído de uma imensa pressão. Seu semblante se acalmou. Os vincos antes fortes e bem marcados pareciam, agora, leves linhas demarcando o contorno angular do rosto. Pensou mais uma vez em Dorin e Daffar. Voltou a ter o espírito pesado. De repente como um raio uma breve idéia passa pela sua cabeça.

E se foram pegos? Morreram? Não, não. Eram safos, espertos. Muito espertos. Ninguém nunca podia com eles.

Lembrou-se de um dia, há muito tempo atrás, em que toda aldeia os procurava. A brincadeira era simples: uns escondiam e outros procuravam. Mas com aqueles dois nada era fácil, nada era simples. De uma cumplicidade única, partiam em direção a floresta, sumiam. Ficavam dias escondidos. Dias! Nada! Foi preciso que todos se juntassem para encontrá-los.

É, mas agora era diferente. Não estamos brincando. Nem estamos na aldeia. Estamos em luta com algo muito mais poderoso e que nem conhecemos!

O terror se apossou de vez dos pensamentos de Bellasco. Terror, terror!

Era certo. Era isso. Morreram todos. Nada mais importava. A aldeia, seus amigos, vizinhos, parentes, Moe, todos, todos mortos. O monstro cumpriu sua promessa. Mas porque? Porque? O que fizemos?

Os mais velhos sempre nos contavam Histórias de honra e boas ações. Histórias de superação e fé. Porque? Que ira era essa? Nada mais importava, nada. Eram bons e justos. Puniam apenas os maus. Os de pouca fé. Os preguiçosos. Como não fazê-lo? Onde estava o erro? Onde?!

Desceu da pequena mula, olhos fixos em um ponto qualquer. Andou, andou, horas, talvez dias. Quem sabe? Acordou todo dolorido em algum ponto desconhecido da floresta. Quase nu. A mulinha, fiel,pastava tranqüila a seu lado. Sentiu-se mais confortável ao vê-la. Um rosto familiar. Pensou. Lembrou-se do acontecido. Quis chorar. Não! Agora não!

Pensando bem, nunca tive nada. Ninguém. Moe? Quem era Moe? Uma futura pretendente? Para que? Para compartilharmos juntos o fim dos tempos? Ótimo! Para isso fico só. Nunca tive esperança.

Ninguém nunca teve. Tudo o que sabemos de bom e justo eram Histórias contadas por velhos alucinados. De que vale? Rastejo nessa floresta sem fim há dias. Rastejo pela vida desde sempre. Guerra, guerra, guerra...

Estranhamente a calma voltou a invadir Bellasco. Uma tranqüilidade quase mórbida. Tudo agora estava mais lento, mais silencioso. O vento soprava distante. As folhas mexiam-se com delicadeza. A terra estava mais macia. Convidativa. Os olhos pesavam...

Vamos, vamos. Corram! Corram!

Eram flechas, lanças, pedras, pedras gigantes, rolando ladeira abaixo. O frenesi era total. Crianças chorando. Mulheres perdidas em meio à confusão. Homens tentando entender o inesperado. Muito sangue. Corpos aos montes. Fogo nos telhados de sape das casas. A cena era, realmente, demoníaca. O barulho ensurdecedor. O céu antes cinza e úmido transformava-se, agora, em vermelho e quente. Tantos pedidos e súplicas pela volta do sol...

Dorin, Daffar venham, por aqui. Corram!

A caverna antes palco de rituais de magia e ponto de encontro dos sábios da aldeia tornava-se agora um abrigo mórbido para os que sobraram do ataque. Velhos, homens, mulheres e crianças se apertavam em meio à confusão. Os olhos marejados demonstravam medo e surpresa. Como? Éramos uma aldeia longínqua. Uma aldeia de paz. Não nos metíamos em outras questões que não na caça e pesca. Éramos aldeões. Agricultores. Não guerreiros.

O que houve, alguém sabe? Perguntou Bellasco.

Um ataque. Um grande ataque. A grande guerra nos alcançou!

Cale a boca, Razar. Está assustando os outros!

É o fim. O fim! Vamos todos morrer!

A extremidade sega e certeira do machado na testa surtiu o efeito analgésico esperado em Razar. Dentro do caos e medo, um pouco de tranqüilidade. Três dias, três longos dias até que a invasão cessasse. Maior que o medo agora apenas a fome dos sobreviventes. Maior que a fome agora apenas a estupefação da cena na aldeia. Maior que a estupefação apenas a vergonha de terem fugido. Maior que a vergonha apenas a raiva e o ódio dos responsáveis pela chacina.

O que faremos Dorin? O que faremos Daffar?

A reorganização da aldeia levou sete longos e dolorosos dias. Encontrar alimento, refazer as casas, buscar nas montanhas os poucos animais que sobreviveram. O enterro dos mortos foi mais doloroso do que podia se imaginar, causando nos sobreviventes uma mistura de ódio e vergonha. Filhos enterrando pais. Avós enterrando netos. Dor e pesar.

É hora de luta.

O olhar fundo e distante, a voz pausada e o timbre grave deixavam as palavras de Dorin ainda mais funestas.

Nada mais nos resta. Nossos pais e irmãos foram levados de nós. Nossas mães e irmãs os acompanharam. Buscar em nossos corações paz e tranqüilidade é tarefa inútil. É tempo de guerra!

O frenesi dos presentes deixava claro o apoio ao breve discurso de Dorin.

O que faremos, Dorin?

Apesar da voz destacada na multidão, Dorin não pode identificar seu dono. É certo que pouco importava. Precisavam dele. Era, agora, o mais velho da aldeia. Precisava dizer algo. Todos ali buscavam um novo líder.

O que faremos?! Vamos nos vingar. É isso que faremos! Não deixaremos por barato esse ataque. Temos ainda força e honra. Temos coragem. Vamos devolver a eles o que nos tiraram.

Em um canto de uma cabana ainda chamuscada Bellasco ouvia o discurso. A voz seca e dura de Dorin soava como o bater inútil de martelo em pedra. Sentia-se em um sonho. Distante de tudo. Suas lembranças mais vivas eram de gritos e fogo. Ainda assim, não conseguia concordar com seus pares. Como revidar de algo que nem conheciam? Que nunca haviam visto? Nada disse. Apoiou o revide, ainda que insatisfeito.

Bellasco, Bellasco!

Era Dorin. Buscava o amigo. Buscava seu apoio. Como saído de um sonho, Bellasco se reacende. Cruzado os olhares. Nada mais precisava ser dito. Satisfeito, Dorin levanta a velha espada e lidera o frágil e despreparado exército da aldeia.

Vamos, amigos. Vamos irmãos. É tempo de guerra!

Mais uma vez o frenesi dos aldeões mostrava apoio ao surgimento da nova liderança. Mais uma vez Bellasco se sente longe e dividido. Seu amigo buscava por ele em meio à multidão. Buscava seu apoio. Como negá-lo? Como dizer a todos que o revide era um erro? Talvez não fosse. Talvez o problema estivesse nele. Fosse um covarde. Não! Um leve chacoalhar de cabeça espanta suas dúvidas, mostrando que seu coração estava certo. Toda forma de vingança, mesmo aquelas mais justificáveis era um erro. O momento chegaria. Sabia no seu íntimo que a hora do convencimento chegaria. O momento agora não era de disputa ou discussões. Era de apoio. De união. Os camponeses agruparam-se lado-a-lado. A formação trazia segurança e conforto. Daffar e Bellasco tornaram-se o apoio de Dorin. Ao longo da contenda, buscavam deixar o pequeno exército focado no dever. Sabiam das dificuldades da decisão de uma guerra. Sabiam dos fantasmas que teimavam em rondar as cabeças mais frágeis.

E o medo se fez presente. Dor e sofrimento. Arrependimento. Regressar era agora seu desejo maior. Buscava nas gavetas ocultas da memória o momento do erro. Passava o plano divino, detalhadamente, tentando encontrar sua gênese. A realização de tempos passados, transformada em frustração.

Mais difícil que o vazio do nada era o transbordamento da frustração. Não entendia. Por mais que buscasse o passo em falso, nada encontrava.

Lembrou-se dos primeiros tempos. Do frágil raminho verde abrindo espaço em meio à árida paisagem. Lembrou-se, emocionada, do broto de esperança crescendo junto com o raminho. Buscou satisfeita na memória a lembrança dos cuidados, dos zelos, com a frágil vida. Satisfeita, acalmou o coração ao ver nos livros da memória a grande obra materializada. As árvores, os rios, os animais. O Homem!

Sua última lembrança a trouxe de volta a realidade. O arrependimento tornou a bater em seu coração. Preferia, agora, o nada. Era menos doloroso.

Os dias de caminhada tornaram se semanas e meses. O tempo de estrada estava deixando o pequeno exército ainda mais cansado e fraco. As dúvidas começavam a surgir em suas cabeças. Os menores comentários tornavam-se fonte de discórdia e desanimo. Muitos nem se lembravam mais o motivo da contenda. A discórdia se apossou como mão forte do pequeno exército. Dorin sentia que seu comando não surtia mais efeito. Estava perdendo a liderança. Bellasco e Daffar apoiavam o amigo.

Vamos, Dorin. Força. Fale com eles. Estão perdidos. Fome e sede são sempre os piores inimigos.

O que faremos. Buscamos um inimigo que não conhecemos. Nem sabemos onde estamos indo. Muitos desistiram. Criaram raízes em lugares desconhecidos. Nem me lembro mais de nossa casa! Estamos perdidos. Como andando em círculos. As árvores se repetem, os caminhos levam, sempre, a um mesmo lugar. Sinto que alguém, ou algo tem brincado com a gente.

O mesmo sentimento era compartilhado por Bellasco. Mesmo não dizendo ao amigo, sentia a força de algo maior sobre eles. Os regendo. Como fantoches. Dorin chama Bellasco e Daffar.

Amigos precisamos de uma decisão.

Continuamos a contenda ou regressamos?

Regressar? Para onde?!

A pergunta de Raffar foi recebida como uma flechada no peito de Dorin. Tão pouco tempo de liderança. Tantos erros.

Para casa! Onde mais?

Dorin, não temos mais casa. Não sabemos onde estamos. Não sabemos como voltar.

Apesar de ter escolhido suas palavras, Bellasco sabia que Dorin sentia-se culpado. Pobre! O que poderia fazer? Um clarão. Bellasco não teve mais tempo de pensar no amigo. A preocupação agora era em se salvar. Os gritos de desespero do pequeno exército já não era mais ouvido. Tudo estava distante. Viu homens, mulheres e crianças serem levados por grandes vultos de água. Sentia que precisava fazer algo. Não conseguia. Estava imobilizado. As lágrimas escorriam lentas de seus olhos, molhavam a face e pingavam, lentamente, do queixo. Volumes imensos de água por todos os lados. Os gritos de desespero atordoavam ainda mais Bellasco. O volume subia vertiginosamente. Galhos de árvores e partes de animais tornavam o imenso caldo ainda mais demoníaco. Bellasco se debatia com força, em desespero. Os gritos agora diminuíam, como já muito distantes. O único som agora era do silêncio. Mil vezes mais tenebroso que os gritos.

Sim. Assim era melhor. Antes o duro fim de um sonho efêmero que o arrependimento eterno.

Buscava agora conforto entre os seres de menor importância. Buscava o verde da relva macia e úmida. O mágico colorido de breves borboletas. O vigor dos pequenos pássaros. A alegria dos jovens mamíferos. Sim. Poderia viver assim. A paz novamente invadiu seu machucado coração. Tornou-se, novamente, leve e calmo.

Por séculos e séculos o convívio harmônico submeteu Mãe Terra. Pensava, agora, com distância dos antigos moradores. Não sentia mais raiva ou arrependimento. Tudo fazia, estranhamente, parte inconstante de um sonho, um sonho ruim, fragmentado. Mais passava o tempo, mais distante as lembranças. Os suspiros agora eram de alegria. De paz. Não mais pensava no passado. Mesmo as antigas lembranças já não mais existiam. Paz.

Bellasco acordo do pesado sono. A relva ainda estava macia sustentava seu corpo. Estranhas sensações invadiam sua mente. Um forte e breve calafrio passou pela sua espinha. Arrepio! Estava perdido. As roupas molhadas, sem sua montaria, sentiu-se ainda mais só. Lembrou-se de seus amigos. Tudo estranhamente distante. Não sentia mais fome ou sede. Seu corpo agora era uma carapaça oca. Suas pálpebras voltaram a pesar. Resistiu. Em vão. Sua mente lutava contra um inimigo poderoso e invisível. Não mais resistiria. Estava muito cansado. As pálpebras mais e mais pesadas. Sono... Bellasco fechou os olhos para nunca mais abrir.

São Paulo, 29 de junho de 2010

Marcelo Saber Bitar